top of page

"Bondages"

Foto do escritor: Odilon José RobleOdilon José Roble

O espetáculo "Bondages”, de Marta Soares, tem como inspiração a série fotográfica "Amarrações", criada pelo fotógrafo surrealista alemão Hans Bellmer, na década de 1950. Esta série tinha como objetivo submeter o corpo feminino a um conjunto de amarrações, típicas da prática sadomasoquista conhecida como bondage. Bellmer amarrou o corpo nu de sua parceira, Unica Zurn, fotografando as diversas dobras e novas formas que emergiam a partir dessas amarrações. Seu olhar também se deslocava, capturando imagens a partir de variados ângulos e perspectivas, que sempre reinventavam o corpo de Unica Zurn.


Hans Bellmer foi um artista alemão nascido em 1902 e é mais conhecido por seu trabalho com bonecas em tamanho real, que ele usou para explorar temas de sexualidade e desejo através de uma lente surrealista. Sua arte frequentemente envolvia a criação de manequins e bonecas que ele manipulava em várias configurações para expressar suas ideias sobre o corpo humano e o erotismo, estreitando um diálogo explícito com a psicanálise, sobretudo freudiana. A crítica da objetificação do corpo da mulher já podia ser sentida na obra de Bellmer, mas sua verve surrealista e o reflexo de seus traumas e fantasias pessoais promoviam uma semiologia muito mais complexa.


Marta Soares revive a série fotográfica de Bellmer dispondo-se nua sobre uma mesa ou plataforma na qual ela promove séries sucessivas de amarrações em si mesma, utilizando-se de um longo fio de nylon, manipulado com perceptível técnica e cuidado. Ao final de cada série, um breve blecaute seguido de um flash de luz mimetizam o ato fotográfico de Bellmer, revelando dobras, volumes, reconfigurações no corpo de Marta estrangulado pela pressão do fio. A artista se apresenta para o flash em uma postura que parece ter emergido da amarração, em uma polimorfia estética surpreendente. O minimalismo extremo da cena contrasta com a multiplicação prolífera das formas, dando a impressão que a criação tende ao infinito. Nos detalhes, não há repetição, nem apelo, apenas o resultado de uma técnica precisa em um material fecundo que é o próprio corpo físico da artista.


Parte de corpo nu com fio de nylon enrolado gerando dobras
Crédito: João Caldas/Divulgação. Fonte: istoe.com.br

Na performance há, também, um claro movimento de desfetichização. Uma mulher que amarra a si mesma, o que recusaria a objetificação feminina. Em uma análise política mais apressada, esse elemento corre o risco de mobilizar clichês morais facilmente entendidos como a recusa da mulher de se conformar a certa ordens de amarrações, provavelmente promovida por homens, sedentos por objetificar o corpo feminino. Já do ponto de vista psicanalítico, fonte manancial ao menos para a obra original, esse apressamento é bastante perigoso. Desfetichizar um impulso sexual é demovê-lo das pulsões que o criaram, ou seja, o que teríamos diante de nós não seria uma sexualidade emancipada mas, sim, uma espécie de gestual lobotomizado pela paradoxal racionalização extrema dos impulsos sexuais.


Em texto fundamental de 1915, que trabalha o fetichismo, Freud demonstra que o par sadismo-masoquismo, do ponto de vista libidinal, é fluido, ou seja, sadismo ou masoquismo se referem apenas às metas do impulso e não a sistemas de opressão. É impossível atribuir ao amarrado uma submissão, essa seria uma camada muito superficial da sexualidade, pois muitas vezes o masoquista é o que propõe o ato em seu desejo de ser controlado. Como diz Freud, nesse mesmo texto de 1915, em grande parte das vezes, o masoquista nada mais é do que um sádico de si mesmo. Lógicas de opressão não funcionam bem nesse terreno pois, considerando-se o fetiche, o que importa é a meta da libido e não as diferenças de gênero (é comum na prática bondage que mulheres dominem homens, ou que, sequer essa binaridade homem x mulher seja necessária); por outro lado, desfetichizar o ato, como dito, tira dele o conteúdo sexual que lhe dá idiossincrasia, tornando difícil um discurso sobre os atributos na ausência deles.


Por fim, ainda nessa digressão psicanalítica que o espetáculo pode suscitar, o projeto de desfetichizar o bondage poderia encontrar mais um empecilho libidinal. Paralelo ao par sadismo-masoquismo há o par voyerismo-exibicionismo. A presença da plateia diante de um ato desfetichizado pode, conscientemente ou não, refetichizá-lo. O reinvestimento da libido é, de fato, uma das operações mais típicas da sexualidade humana e a matéria do fetiche é variada, por exemplo, o corpo amarrado da artista, desfetichizado de sadismo pode ser reinvestido de fetichização política. Por mais que neguemos os impulsos sexuais eles vão sempre retornar, mesmo que sejam recalcados, reinvestidos ou, até mesmo, amarrados.


Tais digressões psicanalíticas, contudo, emergem dos impulsos desafiados pelo espetáculo, seja pelo seu objeto, seja por sua inspiração, mas não são um cabresto interpretativo. O espetáculo de Marta Soares é provocativo, contemporâneo, borra fronteiras de linguagens e está muito bem instalado na cúpula do Teatro Municipal de São Paulo. "Bondage" é uma obra premiada, de uma reconhecida artista da cena paulistana e brasileira. Vale a experiência e vale o debate.


Ficha técnica


Concepção e Direção: Marta Soares.

Performance: Marta Soares.

Dramaturgia: Bruno Levorin.

Desenho de Luz: Aline Santini.

Objeto Cênico: Guilherme Pardini e Marcelo Venzon.

Produção: CAIS Produção Cultural. José Renato F. de Almeida e Beto de Faria.

67 visualizações0 comentário

コメント


bottom of page