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"QUEÑUAL" - Escrita apreciativa da Cia. Pé no Mundo

Foto do escritor: Paula SallesPaula Salles

Preâmbulo 1 - Peço licença para estrear nesta atuação coreográfica de escrever sobre a dança e dançarines que estão na cena. Há algum tempo este desejo rondava-me e o convite do Blog Ensaios Críticos para compor esta equipe de escrita sobre a dança contemplou-me muito e agradeço por esta oportunidade. Inspiro-me para fazer tal exercício nos Trajetos Apreciativos do site Arquivos de Okan de Deise de Brito, que se preocupa com a solidificação de uma memória negra nas artes cênicas e que parte do princípio da escrevivência de Conceição Evaristo. Acho importante fazer tal destaque porque ele delimita muito sobre a escrita que pretendo fazer aqui. 


A apresentação que assisti ocorreu no teatro do SESC 24 de Maio, no dia 08 de Junho, sábado, às 20h. Na plateia, um público majoritariamente composto por pessoas da área da dança, ou familiarizados com este ambiente, porém, na fileira logo atrás de mim, um pequeno grupo de homens, aproximadamente uns três, que, supostamente, não estavam acostumados a frequentar aquele local. O linguajar, tom de voz, as expressões utilizadas e o comportamento, sugeriam se tratar de pessoas um pouco mais velhas, talvez com mais de quarenta anos, ou envelhecidas pelas possíveis experiências de uma classe social desfavorecida. A presença deles interferiu diretamente na minha fruição da obra e certamente nas de outras pessoas ali presentes que reagiram às suas atitudes durante o espetáculo. 


Este grupo em específico, literalmente dialogava com a obra, descrevendo as ações à medida que elas se sucediam, ao mesmo tempo que suas sensações. Um deles mostrava-se mais exaltado que os demais e parecia não se importar com os sons de "Xio" da plateia pedindo silêncio e com os olhares de reprovação com sua atitude em comentar sobre a obra em voz alta. Não foram raros os comentários do tipo: " Não estou entendendo nada disto aqui." "Eu falo quando quiser" ou "Nossa! Eles estão mortos de cansados!", neste caso, depois de uma sequência de movimentos exaustiva em que o grupo todo termina soltando um som de suspiro. Todo este ocorrido sem dúvida desafiou a nossa, a minha concentração para assistir a apresentação. Não pretendo fugir do objetivo desta escrita aprofundando-me na reflexão deste fato que daria um outro texto, mas assumo que ele me instigou a me perguntar o quanto, realmente, todas as pessoas que se colocam a favor de um discurso decolonial, artistas esimpatizantes das artes, estão dispostas a descolonizar seus hábitos quando se deparam com situações como esta? Quando o que dançamos foge dos ambientes corriqueiros aos quais estamos acostumados, como estamos dispostos a lidar com as reações que nos confrontam inesperadamente? Sejamos nós artistas ou não. 


Feitas estas considerações posso agora deter-me na apreciação. 


Entre os muitos significados de Queñual, há o de uma vegetação nativa, antiga, da região dos Andes que possui facilidade de adaptação climática. É uma das árvores mais resistentes ao frio e armazena grandes quantidades de água, alimentando nascentes e olhos d'água. Ocorre principalmente no Peru e na Bolívia, mas também é encontrada no Equador e na Argentina. 


Queñual, título homônimo do texto teatral escrito por Gabriel Cândido, dá tessitura à narrativa da Cia Pé no Mundo, que com linhas hora tênues, hora bem alinhavadas, nos conduzem à apreciação do trabalho, que nos convida a transitar nas histórias afro diaspóricas presentes nas Américas, mais precisamente nos Andes, as amefricanidades definidas por Lélia Gonzalez, que enfatizam capacidades de sobrevivências e renascimentos. A narrativa parte de uma provocação que me atinge diretamente e que interfere na minha fruição com a obra: "Por quê ser brasileiras/brasileiros nos coloca distantes de noções de identidade sul-americanas/ latino-americanas?¹" 


Confesso que são muito limitadas as minhas referências das manifestações das culturas afro-indígenas na região andina e na América Latina como um todo, o que restringe a minha apreciação, ao mesmo tempo, isto permite que eu reconheça outros aspectos desta afro narrativa em dança que a Cia Pé no Mundo se dispõe a fazer. 


Gosto, muitas vezes, (na maioria delas), de contemplar as obras sem nenhuma ou poucas informações delas e deixar-me levar pelas primeiras impressões que elas me causam, foi mais ou menos assim que fui assistir a este trabalho. 


Antes mesmo de adentrar ao recinto, ou nas imediações além do palco, alguns "seres invisíveis" nos rondavam. Utilizo o termo "invisível" porque aparentemente nem todas as pessoas que adentravam o recinto os notavam de imediato, eu mesma fui uma delas, porque eles apareciam e desapareciam, assim como são povoados nossos imaginários na relação com o que é extraterreno, porque seus rostos estavam mascarados e o restante do corpo recobertos por extensos tecidos que tiravam suas formas e criavam outras. Estes "seres" transitavam nos corredores da plateia em contraposição a dois outros personagens que se encontravam no palco. Estes de roupas em tons mais neutros, mas também mascarados, ocupavam o proscênio numa linha horizontal. 


Estes personagens que transitavam no palco remeteram-me em primeira instância à comédia de L'art. Eu sei, eles não eram, e essa impressão logo desfaz-se a cada vez que os outros personagens mascarados entravam em cena, que o cenário era revelado, que a música preenchia o espaço. Ao mesmo tempo, a coreografia de Cláudia e Roges não abandona a possibilidade de fazermos essa leitura, uma vez que ela transita o tempo todo com repertórios e matrizes diversas da dança e não só com as que pertencem às matrizes afro-indígenas. E, é também por tudo isto que comentei acima, que ao assistir o trabalho desta companhia, lembro-me igualmente de Katherine Dunham, Alvin Ailey e no Brasil, Mercedes Baptista, para citar apenas as/os pesquisadoras/pesquisadores e artistas negras e negros, que encontraram nas matrizes afrodiaspóricas elementos que pudessem ser transformados numa "dança cênica", seja pelos códigos de movimentos ou nas práticas de rituais que estavam presentes ali. Isto, entretanto, não é uma novidade, o que não é um problema. Porém, particularmente, a maneira como esta relação da pesquisa cênica ocorre na criação desta dupla, se aproxima bastante, em minha opinião, deste modo de pensar presente nas danças das coreógrafas e coreógrafo aqui citados. 


Cláudia e Roges são muito bons coreógrafos e contam, além das próprias atuações, com um elenco afiado; César Augusto, Gabriela Bertulino, Thayná Oliveira e Wes Peixinho, que consegue concretizar os desejos de ambos e conquistam a nossa admiração tanto pela sutileza da beleza dos pés descalços pisando o chão articuladamente, tanto como com movimentos mais desafiadores que exigiam mais fôlego e técnica. 


As linhas precisas e bem definidas de pernas, braços e giros, o virtuosismo dos movimentos quase acrobáticos, parte do figurino colado como uma segunda pele, a maneira como os solos e duos apareciam em cena, ao mesmo tempo que atrelado a tudo isto, surgem às referências aos rituais afro-indígenas, as batidas de pés que me remetem às congadas, os movimentos dos quadris que demarcam diferentes presenças negras na espiral do tempo e espaço, redesenhando passado e presente, bem como as culturas as quais pertencem, pois o que observamos não se trata apenas do Brasil. Estas são algumas destas características que me levam a compará-los com as coreógrafas e coreógrafo acima citados.


Estas impressões misturam-se para mim, com as manifestações de rituais do vodu, os zangbetos, que ocorrem em alguns países da África Ocidental como Benin e Togo, nos quais, acredita-se, que os seres invisíveis dançam com as pessoas ao redor, vestidos de palhas ou tecidos coloridos com os quais rodopiam, levantam-se, abaixam-se numa coreografia espantosa que desafiam os conhecimentos das nossas manifestações ocidentais. Há especialmente um trecho da coreografia que esta imagem fica mais forte, quando, em grupo, o elenco executa movimentos com os rostos tapados por capuzes e usando tecidos rodados e coloridos que revestem todo o corpo, um dos auges do trabalho em minha opinião. 


Pode-se considerar que a trama do espetáculo transita sobre estes dois aspectos estéticos entre o visível e o invisível, traço comum nas culturas afro-indígenas e com a qual o corpo se constitui. As impressionantes habilidades físicas são as primeiras e as movimentações sutis, simuladas ou sugeridas as segunda. Prefiro, pessoalmente, as últimas, e isto não significa que as primeiras não estivessem boas, mas gosto da maneira como as imagens e imaginários são desenhados como algo que nos parece familiar e, ao mesmo tempo, desmancha-se, que abre e fecha possibilidades de deslocamentos. 


A cenografia do espetáculo pode ser igualmente mais um dos elementos que conecta visível e invisível, troncos coloridos nos remetem a muitas coisas: festas, mastros, totens, símbolos que nos transportam de um lugar para outro e brincam com a relação entre matrizes e motrizes, raiz e rizomas, origens e desvios, a depender das necessidades e anseios de cada lugar, de cada povo originário ou oriundo da diáspora negra. É por isto, que mesmo distantes e distintos é possível nos reconhecer. 


O jogo entre visibilidade e invisibilidade chega ao auge ao final do espetáculo quando bailarinas e bailarinos já desmascarados, com os corpos mais a mostra em shorts curtos e "segunda pele", dançam de frente para os troncos de madeiras coloridos, que saíram do fundo para a frente do palco, numa espécie de ritual em que os pés percutem o chão e o tronco se verticaliza ereto na direção do mastro. Nesta dança, que se repete por algum tempo, dançarinas e dançarinos, saem aos poucos, até que todes se retiram do palco e a ausência toma presença e pulso. 


E foi em meio a estas sobreposições de sensações que o grupo de homens "interlocutores" que estava na plateia, de algum modo, também foi capturado pelo trabalho, pois, contrariando os próprios comentários, manteve-se até o final e aplaudiu o espetáculo de pé, despertando a minha a atenção mais uma vez.


Para finalizar, pego emprestadas aqui as palavras do colega Victor Hugo Neves de Oliveira (UFPB), ditas numa banca de defesa de dissertação: Claudia e Roges são mais uma prova de que o projeto ancestral deu certo, uma vez que seguem dando curso às possibilidades de existências das danças negras na cena paulistana e do Brasil. Vida longa.

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¹ Referência feita a sinopse da obra que consta na página da companhia no instagram: https://www.instagram.com/p/Csd2_qhOl9i/



pessoas pretas usando túnicas colorida e tecidos como capuzes

Sobre a Obra

Informações obtidas em: Agenda Cultural | Queñual - acesso: 15/06/24


QUEÑUAL é um texto-dança conduzido por dois personagens que se imaginam numa história contada por um mestre ancião. Nesta jornada por territórios da Cordilheira dos Andes, eles passam a se questionar o porquê de serem brasileiros os colocam distantes de noções de identidade sul-americana, latino-americana, amefricana. 


Ficha Técnica

Informações fornecidas pela companhia.


Direção e coreografia: Cláudia Nwabasili e Roges Doglas 

Assistência e acompanhamento de pesquisa teórica: Mariana Queen Nwabasili Roteiro teatral: Gabriel Cândido 

Ensaiadora: Suzana Mafra 

Elenco: Cláudia Nwabasili, César Augusto, Gabriela Bertulino, Roges Doglas, Thayná Oliveira e Wes Peixinho 

Preparação Corporal: Cláudia Nwabasili e Roges Doglas 

Direção Musical: Gustavo Souza 

Voz: Alessandra Leão 

Sopros: Marcelo Monteiro 

Guitarra, baixo e violão: Estevan Sinkovitz 

Bateria e percussão: Gustavo Souza 

Figurino: Karla Pê 

Co-criaçao de figurino: Magnum Ladeira 

Criação/confecção de máscaras: Vlad Victorelli 

Iluminação: Rossana Boccia/Violeta Chagas 

Cenografia/objetos relacionais: Juliana Prado Godoy 




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"Bondages"

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