Vestígios Futuros - Impressões, resíduos, memórias de uma caminhada de 28 anos, a mais recente encenação da Cia. Nova Dança 4, está em cartaz desde 23 de agosto até 15 de setembro, no Espaço Ateliê, na Vila Buarque. O título da encenação, instigou-me várias camadas de percepção sobre nossas experiências vividas e nosso devir, ao mesmo tempo, o nome da obra apresentou-se, após partilhar o se dar a ver sua teatralidade, como uma sinopse de sua proposição poética. Enquanto espectadora, fui provocada a vivenciar uma experiência estética dilatada pelo senso perceptivo dos sentidos no aqui e agora do ato performático, e, dialeticamente a incitar referências de memórias cinestésicas. Memórias daquilo que persiste, encarnadas nas corporeidades do devir...
Sob meu olhar, difícil é qualquer leitura sobre a Cia. Nova Dança 4 sem tomar como pontos de referência alguns vestígios deixados no rastro das experiências vividas pelos artistas da cena, nas últimas quatro décadas. Impressões, resíduos, memórias não seriam vestígios do agora, de algum futuro, do amanhã, outro dia, do que será que está por vir?
A caminhada de 28 anos da Cia. Nova Dança 4 sinaliza traços de uma paisagem da dança cênica paulistana emergente na década de 1990. Um desses traços historiográficos é a sua incubadora, o Estúdio Nova Dança - Estúdio de Pesquisa e de Criação de Dança, no bairro do Bixiga no período entre 1995 a 2007. Por sua vez, a existência do Estúdio, traz os vestígios de uma dinâmica contracultural após 1968, no qual emergiram projetos estéticos emprenhados da dimensão política do sujeito movente.
A dança cênica, nesse contexto contracultural, atraiu coletivos de artistas para uma dança experimental contemporânea, interessada em experienciar, na ação do mover-se, corporeidades expressivas, transformadoras, provocativas e/ou inovadoras. Nas décadas seguintes, de 1980/90, há uma propagação desses coletivos que delinearam um pensamento articulador sob diferentes tratados de cooperação/associações, gerando produções de maneira independente. Mesmo diversos e dispersos, esses projetos, que já vinham cavando na paisagem histórica paulistana novas trilhas para a dança cênica, sintonizavam em seus eixos articuladores, o propósito de incitar uma tessitura autoral de práticas artístico-estéticas, com uma visão política da relação arte e vida. E o Estúdio Nova Dança, foi uma dessas iniciativas autogestionárias.
Avançando até o início dos anos 2000, esse ativismo reverberou tensões políticas para além de suas propostas estéticas, contestaram e reivindicaram políticas culturais de incentivo e fomento à pesquisa de linguagem continuada e circulação de suas obras. Ao mesmo tempo, deixam entrever as contradições político-sociais, para resistir aos regimes estéticos do poder vigente, é necessário depender das relações de mercado, dos poderes e políticas públicas e das ordens de discursos do poder crítico e curatorial. Dinâmica contextual em que foram demandados os atuais editais públicos como canais de apoio financeiro para produções artísticas, entre eles foi criado em 2006, o Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade De São Paulo, com o qual foi realizada a criação Vestígios Futuros - Impressões, resíduos, memórias de uma caminhada de 28 anos, da Cia. Nova Dança 4.
As artistas idealizadoras do Estúdio Nova Dança, Adriana Grechi, Cristiane Paoli Quito, Lu Favoreto, Thelma Bonavita e Isabel Tica Lemos, vinham no rastro de gerações de artistas que buscavam um entrelaçamento polissensorial do corpo cênico, no qual implicava processos de pesquisa, considerando o corpo dos intérpretes, como laboratório de percepções. Mesmo após o seu fechamento, em 2007, seus projetos se espalharam e difundiram modos de fazer dança contemporânea que ecoaram tendências muito distintas que, ainda hoje, replicam a noção de flexibilização de corporeidades dançantes, entre eles o da Cia. Nova Dança 4, fruto da parceria de Tica Lemos e Cristiane Paoli Quito, desvanecendo as fronteiras entre dança e teatro.
A Cia. ND4 deu continuidade à forma peculiar de seu pensamento estético auto descrito como uma “invenção de vocabulário e construção de linguagem própria”, fundamentada na “síntese-antropofágica” de estudos somáticos, técnicas do Contato Improvisação, da Nova Dança, Aikidô e diferentes práticas de treinamentos para o ator. A experiência vivida nessa síntese-antropofágica engendrou a práxis artística da improvisação atrelada às noções de autonomia aos processos colaborativos de criação. A teatralidade improvisacional da Cia. vem propondo poéticas cênicas orquestradas sensorialmente entre todos os agentes envolvidos na experiência estética incomensuravelmente vivida, dança, música, luz e plateia, no instante performático.
Esse modo de lidar com o corpo em cena traz como legado filosófico a noção de corpo enquanto experiência, que por sua imediatez incomensurável da própria vivência, intransferível, coloca em transe uma rede de significâncias. De modo que essa experiência viva, ao lidar com as incertezas, pelo próprio caráter de sua temporalidade, atrela-se ao ponto de vista estético, conferindo-lhe uma dimensão ética e política por suas implicações com a complexidade contingencial e a fugacidade de nossa vivência mais banal.
Nos processos de criação da Cia. ND4, as abordagens somáticas, associada a essa noção de corpo, ressoam dispositivos de agenciamento perceptivo das relações dos intérpretes consigo mesmos, com os outros e com o mundo, que valorizando o conhecimento experiencial, potencializam e diversificam a emergência de estados de presença a fim de tocar, sensibilizar e afetar o outro. Nesse cruzamento fértil entre pensamentos filosóficos e investigações cinéticas e cinestésicas, é reportada a dimensão política do gesto cênico, enquanto sujeito dançante, em seu ponto de vista estético, engendram-se marcas, vestígios de conceitos e de ideias de nossa história pessoal e coletiva, cultural e pulsional, e, portanto, encontram-se imbricadas em suas construções de poéticas.
No projeto estético da Cia. ND4, a complexa rede de materialidades e sociabilidades manifestadas na ação cênica, a cada espetáculo, provoca uma afetação física imediata que envolve sinais proprioceptivos nos artistas e nos espectadores, pela qual se sustenta uma experiência coletiva de mobilização estético-sensorial. A ação cênica, em seu nexo temporal, comove para o futuro a percepção de vestígios e impressões persistentes encarnados no ato performático, e, mobiliza o espectador afetado a posicionar-se para uma ressignificação dos sentidos no presente.
No processo de Vestígios Futuros - Impressões, resíduos, memórias de uma caminhada de 28 anos, foi abarcada em sua operação antropofágica, a prática dos Passes Mágicos, sistematizados por Carlos Castañeda e com publicação lançada em 1997, e segundo o autor, uma série de movimentos ensinados pelo xamã D. Juan Matus, do povo Yaqui de Sonora, México, durante seu trabalho de campo nos anos de 1960. A adesão à prática dos passes mágicos nos treinamentos da Cia. ND4, não só deu continuidade aos seus princípios de confluências somáticas, ao que tange cruzamentos de saberes dos povos da floresta e filosofias ocidentais e orientais, mas também, redimensionou a imbricação dramatúrgica do sujeito movente.
Enquanto uma das matérias de motivação poética os passes mágicos implicam uma aproximação com práticas vindas de cosmovisões ancestrais para cura mental, emocional, espiritual, estrategicamente buscando novas alternativas de se pensar o humano no mundo contemporâneo, e diversificando e dilatando estados de presença em suas redes de sentido entre o fluxo cinestésico gestual e a ação cênica.
Suas estratégias compositivas deram prosseguimento, também, a um modo de trabalhar a dramaturgia em que são compendiadas, processualmente, diferentes fontes de inspiração. Neste caso, os passes mágicos, suas próprias memórias cinestésicas, pessoais e nos 28 anos da Cia., revolução mexicana, visita do artista francês Antonin Artaud à terra dos índios tarahumaras, em 1936, no México, seus desenhos-escritos e a sua concepção do gesto teatral, a teoria das formas, ponto e linha sobre plano de Wassily Kandinsky, pesquisa e estudo sonoros.
Longe de ser uma soma confusa de referências, a estratégia do compêndio, por exemplo, serve a um trabalho de transformação e assimilação de vários materiais, operado pelo fluxo gestual cinestésico e cinético, que detém uma liderança de sentidos, porém, instável, porque dado seu caráter improvisacional, é tramada na imediatez do ato cênico performático. A trajetória da Cia. se reporta a um conceito expandido de coreografia não somente como prática estética, mas como um experimento perceptivo, artístico e social. Nesta recente encenação, as diferentes fontes processualmente compendiadas, tratadas como paisagens políticas da condição humana, primordial e contemporânea, partejam poéticas.
Em sua práxis artística, a caminhada de 28 anos da Cia. ND4 traz vestígios da desestabilização das funções hierárquicas normativas, uma vez que em seu trâmite criativo, os intérpretes, cumprindo o papel de colaboradores e propositores, ativam mudanças nas relações políticas, nos seus modos de trabalho, modos de produção e de encenação performática. Experiência que sinaliza uma discussão sobre a questão da dramaturgia na dança contemporânea, e mais especificamente, a emergência da figura do dramaturgista nas artes cênicas.
Nos processos de concepção, da Cia., o papel da direção se flexibiliza, aproximando-a da função específica de dramaturgista, cumprida de maneira muito peculiar por Cristiane Paoli-Quito, assumindo o papel de pilotagem da equipe de trabalho envolvida, e de coautoria das tessituras cênicas. Seus fazeres enfatiza a necessidade de proximidade em que são associados os aspectos afetivos, e rejeita a noção de observador centralizador que detém um poder sob sua perspectiva crítica distanciada.
A arte de pilotar orienta-se pela administração de energias dramatúrgicas entre várias e diferentes materialidades, visualidades e sonoridades consubstanciadas no próprio processo de pesquisa. Mesmo que nomeada na ficha técnica como direção geral, sua função está mais para esse exercício de pilotagem dramaturgista, caracteriza-se pela flexibilidade e complexidade de papéis variados – a habilidade afetiva de mover-se entre reflexão teórica e conhecimento prático, ser ao mesmo tempo, um olhar exterior e participante envolvido, mediador das trocas de conceitos, sentidos, atenções, tensões e percepções – que navegam à deriva no mar de incertezas do processo de criação.
Em Vestígios Futuros, Rubens Rewald retoma sua parceria com Cristiane Paoli-Quito, dividindo as funções de roteirista e dramaturgista, sem colocar em causa os valores hierárquicos, torna-se um companheiro conversador, sobre a teia invisível de sentidos processualmente manejados. Nessa conversação, também compartilhada pela equipe, as relações de cumplicidade autoral são equacionadas, articulando diferentes modos de trabalhar junto como colaboradores ativos. Direção geral, intérpretes, trilha sonora, design de luz e roteiristas, trabalham em prol de um transporte de imaterialidades proprioceptivas ativadas pelo nosso senso cinestésico, às quais dão substância a uma poética do invisível, tramada na imediatez do fluxo da encenação.
Contudo, esse instigante desafio de uma práxis artística muito própria, foi possível devido a convivência de um mesmo grupo de artistas compartilhando experiências vividas no tempo da pesquisa continuada. Convivência inescapável ao exercício das micropolíticas de poder que pautadas nas noções de autonomia e de processos colaborativos de criação, evidenciam os dilemas a que qualquer jogo de sociabilidade se inscreve.
A experiência convivida nos 28 anos de pesquisa continuada movimenta-se por uma dinâmica incessante de compartilhamentos das redes de afetos que estruturam suas corporeidades, interesses, impasses, conflitos e contradições, incluindo o processo de envelhecimento de seus intérpretes que intercedeu nesta criação. A necessidade de proximidade se dá por meio também de sua dimensão performativa ao compartilhar seus trabalhos em processo, do qual tive a oportunidade de acompanhar na ocasião em que abriram suas primeiras investigações improvisacionais a partir da incorporação dos passes mágicos. Essa constante orquestração politiza os valores que regem não só os modos de organizar as atribuições hierárquicas sob o regime colaborativo das funções desse fazer artístico, mas também, os modos de investigar coletivamente as relações entre o sujeito e a teatralidade em que flutuam sentidos poéticos pelos quais o mundo nos comove.
Além de participar do work in progress, tive oportunidade de acompanhar a conversa sobre as “Práticas compartilhadas” com Cecilia Almeida Salles, de observar o ensaio geral que antecedeu sua estreia e apreciar duas apresentações. Na primeira, nós espectadores fomos convidados a olhar os intérpretes em círculo realizando os passes mágicos, e que me transportou a metáforas do sagrado e dos tempos primordiais. Nas cenas seguintes, o círculo se desmancha, e a corporeidade dos passes mágicos se dilui e se transforma, organizando outros sentidos gestuais, o que me transportou a metáforas da individuação e fragmentação contemporânea. Nessa tentativa descritiva do que foi olhado usei minha memória visual e cultural, difícil é encontrar meios de tradução para a experiência cinestésica vivida no ato da performance cênica.
Aquilo que é indizível, colocou-me no jogo de uma aventura política, a partilha da carga afetiva, dos gestos, de quem dança, de quem musica, de quem opera a luz e o som, e daquele que vê. As imaterialidades proprioceptivas, transportadas por meio de nosso senso cinestésico, dão substância a uma poética do invisível, tramada na imediatez do fluxo cinético da encenação. Em seu nexo temporal, a afetação física imediata, nos artistas e em mim, mobilizou uma experiência estética sensorial coletiva, que comovem vestígios e impressões persistentes encarnados nas corporeidades do devir. Em relação a outras apreciações, só vivendo a experiência emergencial de estados de presença, o que estará por vir?
Serviço
Espaço Atelier Cênico – R. Fortunato, 241. Vila Buarque.
Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. R$40. Até 15/09
Ficha técnica
Direção Geral: Cristiane Paoli Quito
Criação: Cia Nova Dança 4
Intérpretes Criadores (as): Alex Ratton, Cristiano Karnas, Gisele Calazans, Lívia Seixas, Isabel Tica Lemos
Músico-Intérprete Criador: Claudio Faria
Pensamento Corporal: Isabel Tica Lemos
Treinamento Corporal: Cia Nova Dança 4 e Cristiano Karnas
Roteiro e Dramaturgismo: Cristiane Paoli Quito, Rubens Rewald
Design de Luz: Marisa Bentivegna
Trilha Sonora original: Claudio Faria e Igor Pimenta
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