Entre os meses de abril e maio de 2024, o Núcleo Cinematográfico de Dança (SP) realizou uma temporada do espetáculo “Blow Up [Vol. 3]: Aqui, Depois" no Jambu Galpão, na capital paulista. A obra em questão compõe uma série da qual também fazem parte as obras “Blow Up [Vol.2]: Lado A e Labo B”, de 2015 e “Blow Up [Vol.1]” de 2014. O Núcleo Cinematográfico de Dança atua desde 2002, na cidade de São Paulo, como uma parceria entre as artistas Mariana Sucupira e Maristela Estrela, que também dançam esse terceiro volume de “Blow Up”.
Há três questões que parecem latentes nesta obra e cujo debate ressoa para além dela: a lida conceitual com o tempo, a produção de imagens que dançam e a elaboração estética de um futurismo.
Assistir a obra pode nos fazer perceber que o título blow up, assim como sua sonoridade, parece fazer eco a uma ideia de big bang. Com o mesmo movimento labial que fazemos para pronunciar essas palavras de língua inglesa, também é possível emitir alguma onomatopéia que remeta a explosão [pow]. A explosão aqui, nessa obra, é um vértice entre o início e o fim. Apesar do esforço questionável que fizemos ao longo dos tempos para estruturar a história como uma linha reta e progressista e tornar o desenvolvimento da própria história como uma imagem equivalente ao tempo; quando enfrentamos esse conceito-experiência sem olhar para algum esquema diagramático externo, mas sim para a sensação do próprio corpo, parece que as linhas se embaralham, se curvam e convergem para o mesmo centro - o centro do momento presente. A relação que temos com as memórias do passado e a relação com a imaginação do futuro se dá a partir do presente, é apenas nele (e a partir dele) que as demais categorias temporais podem ser fabuladas. Nesse sentido, o subtítulo da obra “aqui, depois”, apresenta uma coerência no jogo de palavras com essa aproximação entre o espaço presente e o tempo futuro, que também elabora certa vertigem para um tempo presente no espaço futuro.
As artistas trazem para a dança uma indagação emergente de todo início de século. Esse tempo que se inicia é o começo de algo ou o fim de algo? Ou os dois simultaneamente? Se estamos cada vez mais distantes do nosso início, estamos então mais próximos do nosso fim? Que humano e que mundo é esse que se construiu ao longo do século XX e que adentra esse novo século? Em que condições físicas, políticas, econômicas e culturais estamos encarando a primeira metade de mais um século?
O início do século XXI apresenta narrativas e imagens menos otimistas que os séculos anteriores (seja o otimismo da crença em nosso potencial revolucionário, seja o otimismo em relação ao homem moderno ou contemporâneo que estava por vir). Os inícios, marcados paradoxalmente por algum fim, faz com que artistas e pensadores comecem a repensar o futuro - afinal de contas, o futuro não é apenas consequência do que foi, mas é também um projeto de imaginação. Há uma quebra geracional e um engajamento coletivo para se pensar o que fizemos até então, para onde vamos agora e como podemos seguir. Não à toa livros escritos e pensados por autores indígenas como “Ideias para adiar o fim do mundo” (2020) de Ailton Krenak e “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” (2016) de Davi Kopenawa e Bruce Albert nos chegam como discursos diretos de sabedorias ancestrais sobre a nossa realidade. Junto a isso, imagens “apocalípticas” com as das recentes enchentes no estado do Rio Grande do Sul mostram as consequências do capitalismo. Estamos não apenas pensando sobre o nosso fim e questionando mais do que nunca alguma ideia de “progresso”, como estamos vivendo o nosso próprio fim.
Nesse sentido, há um alinhamento entre a proposta de investigação em dança do Núcleo e as movimentações de pensamentos em torno do nosso tempo. Na realidade, uma busca pela trajetória do grupo [destaque aqui para o seu site oficial https://www.cinedanca.com/ que apresenta o repertório e alguma historiografia com um requinte de organização necessário e que poderia fazer parte dos esforços de todo artista/grupo em organizar suas obras e investigações] faz perceber que esse alinhamento já vem se dando em um longo percurso de pesquisa artística. Frases como “o êxtase como ínfimo momento de revirar os olhos” (Transe em Trópico, 2021), “o trânsito entre o desastre e o restauro” (In Dark Trees: Exit, 2017), “decomposição progressiva de uma explosão” (Blow Up Vol. 2 Lado A, 2015), “o que sobra da explosão é nada” (Blow Up Vol. 2 Labo B, 2015), “um presente que tem sede de devir” (Blow Up Vol. 1, 2014), “espaços em que o tempo parece estar em suspensão” (Be about to, 2014) compõem poeticamente os enunciados de vários de seus trabalhos onde o volume do corpo, do tempo e do espaço são demandas de experimentação.
A partir dessas frases-inquietações podemos notar que a prática em dança não, necessariamente, corresponde a uma tentativa de representações desses termos, mas sim de ativação dos mesmos através da ação artística. Ao invés de pensar qual dança representa o “depois”, nós compartilhamos de um dançar o “depois”. Como se os movimentos recriassem uma linguagem e um repertório sensorial para esse campo conceitual, que é apresentado na obra artística como campo de sensações, para alcançar aqui os termos deleuzianos. A partir disso, dois corpos em cena se movem como em um contínuo de tentativas, esforços e incompletudes. O movimento que tenta se estabelecer, engasga no corpo e ganha algum ar metalizado que nos lembra os esforços robóticos de repetição da sinuosidade humana; nesse ponto, a robotização, a descoberta infantil e a repetição existencial humana se convergem e se confundem. Ter dois corpos de mulheres em cena para dançar o fim, como os corpos que restam, não é uma marcação imagética que passa ilesa. Se o mundo se origina em uma buceta [ou fenda] ele também pode se encerrar nela. Ou ainda, se o mito da masculinidade-branca-cistêmica é aquele que insiste em dançar o progresso, mesmo que caminhando para sua autodestruição, são as realidades de mulheres ou de sul-global que poderiam nos puxar para a verdade da imagem do fim. O duo, aqui, não funciona pelo espelhamento, mas sim pela complementaridade de forças-esforços semelhantes para alcançar o blow up - tanto que, as imagens das duas se sobrepõem perfeitamente apenas em alguns momentos, onde a percepção da sintonia entre elas torna-se evidente ao ponto de nos indagarmos “como elas chegaram à mesma forma?”, “coincidência ou projeto?”. Esse pequeno assombro pela sintonia reorganiza a experiência.
Mariana e Maristela dançam com uma presença cênica e uma atenção extraordinária para a movimentação. Ressoa com o que nos diz a performadora e pesquisadora Eleonora Fabião: “A qualidade de presença do ator está associada à sua capacidade de encarnar o presente do presente, tempo da atenção. O passado será evocado ou o futuro vislumbrado como formas do presente” (2010).
Há ainda um detalhe notável na proposição, não é uma dança sobre o fim, mas sim sobre o que há depois do fim. Dessa forma, existe uma responsabilidade política, estética e ética da arte com relação a um desenho dos futuros. Do mesmo modo que aguardamos das organizações políticas, dos projetos educacionais e da própria natureza alguma resposta em torno do que virá, a arte também projeta e desenha nossos imaginários. Dessa forma, podemos dizer que há um empenho coletivo em desenhar uma nova proposição de futurismo. E nesse ponto, a obra apresenta imagens que podemos questionar. Tanto os figurinos de Maristela Estrela quanto a estrutura petrificada que se instala cenograficamente ao fundo do palco são metalizadas, os tecidos do corpo apresentam leveza e plastificação que contribui para a elaboração da imagem de algum tipo de dinamicidade e desenvolvimento técnico; a sonoridade operada ao vivo por Rayra Costa hibridiza beats sintéticos e batidas ancestrais; os movimentos também se robotizam; o quadro ao fundo nos mostra frase e narrações, por vezes, em intensa aceleração que impossibilita a leitura e torna-se a própria imagem da velocidade. O espaço inteiramente branco refletindo a luminosidade [com desenho de luz assinado por André Boll], os corpos desafiando seus próprios eixos gravitacionais, as formas petrificadas e expandidas nos remetem a outros espaços siderais. As palavras que destaco neste parágrafo ressoam perfeitamente com os resquícios da estética vanguardista do futurismo italiano.
No início do século XX, atravessados pelas transformações políticas e econômicas que compuseram a sociedade ocidental do norte global, o movimento futurista passa a tentar esboçar imagens que alcancem este homem moderno que se formava. “O estilo deve tornar-se rápido, impetuoso, turbilhonante como a vida moderna em seu incessante explodir e pulsar; portanto, na poesia, as palavras em liberdade; na música, os ‘entoabarulhos’; na arquitetura, o material metálico e industrial; na arte, o dinamismo plástico. Somente esses meios e esses modos podem garantir a tradução estética do novo ideal de beleza” (Mario De Micheli, 2004). Apesar de vivenciar as precariedades do proletariado promovido pelo desenvolvimento industrial, os futuristas italianos ainda acreditavam em certa democratização dessa modernização, numa crença de que essas máquinas poderiam expandir os corpos em espacialidade e temporalidade, as conquistas espaciais se seguiram e começaram a povoar nosso imaginário de conquista e desenvolvimento. Essas características da imagem entre o metalizado, a velocidade, o hibridismo e a dinamicidade são sintetizadas pelas imagens de arte na pintura, na escultura e no cinema, principalmente.
O fato de que as características da imagem de dança produzida em “Blow Up [Vol. 3]: Aqui, Depois]” pareça ressoar com esse futurismo do século anterior, provoca uma anacronia. A coerência pelo impulso de repensar as imagens para o nosso futuro, diante da realidade do nosso fim, encontra barreiras nas imagens ainda cristalizadas e produzidas pelos artistas das vanguardas europeias. O que indica dizer que precisaríamos de outras imagens para o nosso atual futurismo que não mais se apoia nos metais, nem na tensão modernista da velocidade-zerogravidade. Talvez seja justamente o conflito com a excessiva organicidade, matéria em decomposição - que parece já ter se manifestado em trabalhos anteriores do Núcleo Cinematográfico de Dança - que se junta à deterioração que nos aguarda após o fim. E a imagem do futurismo modernista que tanto se manifestou na arte até então só poderia aparecer pela falência da mesma.
Referências
Fabião, E. Corpo Cênico, Estado Cênico. Revista Contrapontos, vol. 10, n. 3. 2010.
Krenak, A. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras: São Paulo, 2020.
Kopenawa, D. Albert, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Companhia das Letras: São Paulo, 2016.
Micheli, M. As Vanguardas Artísticas. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2004.
Ficha Técnica
Concepção : Núcleo Cinematográfico de Dança
Criação e dança : Mariana Sucupira e Maristela Estrela
Coreografia realizada a partir de desdobramentos dos trabalhos BLOW UP [vol.1] e [vol.2] criado por Clara Gouvêa, Ilana Elkis, Isadora Prata, Juliana Gennari, Mariana Sucupira, Maristela Estrela e Martina Sarantopoulos.
Trilha ao vivo: Rayra Costa
Desenho de luz : André Boll
Figurino: Maristela Estrela
Mixagem de som: NCD
Operação de luz: Victor Isidro
Operação de vídeo: Tarcila Rigo Andrade
Produção: Lívia Império / Naru Produções
Assistente de produção: Raíssa Bagano
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