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  • Foto do escritorHelena Katz

"Fabulando o mundo que muda de lugar"

Maurício Flórez, talvez enredado na sonoridade de seu sobrenome colombiano, anuncia querer se transformar em flor. De 1 a 24/03/2024, no Sesc Avenida Paulista, apresentou sua dança/colagem, vestido nas cores da terra e da vegetação, com meias que destacam seus dedos-raízes. Com suavidade, se coloca como mais um, dentre os elementos que elegeu para compor a sua cena, que está povoada por objetos que são memórias congeladas, alguns assinados por Marcos Yamamoto (cerâmicas) e Mauricio Celis (coração). 


Eles estão dispostos em uma horizontalidade sem relevâncias, mas com reentrâncias (uns com raízes mais e outros com raízes menos longas), distribuídos em intervalos que lembram uma partitura musical, com tempos regulares, que vai sendo “esburacada”, na medida em que esses objetos vão sendo retirados. E não é exatamente isso o que fazemos quando contamos nossas memórias? Não retiramos coisas, e a configuração se esburaca e se modifica? Como se sabe, a memória nunca é um relato exato do que aconteceu, ela presentifica o que consegue ser recordado e contado a cada momento. 


Como tudo o que é vivo, as memórias também se transformam. Por isso, os especialistas nos dizem que elas são sempre inventadas, uma vez que as recolhemos, e depois devolvemos, ao seu fluxo permanente de transformação. 


Aparentemente, Mauricio vai ensaiando, com pequenos gestos, precisos e cuidadosos em cada inflexão, se tornar cada uma das histórias que conta. O roteiro vai surgir ali, na hora, pois nasce da escolha que quem está assistindo faz, dentre os objetos/memórias que estão no chão. 


Está dito que “Memórias para se transformar em flor” lida com a inteligência vegetal, ainda pouco difundida entre os humanos. Mas isso é o que pode ser coletado na superfície. Porque o que vai se revelando, é que esse trabalho não tem um assunto fora dele, do qual ele esteja tratando. O que pode parecer uma conversa sobre o mudo vegetal, são ações que nos mostram que é a relação entre o movimento e a transformação que está fazendo brotar o que vemos e o que não vemos. Ou seja, o trabalho não é sobre nenhum tema, o trabalho, graças à dramaturgia burilada por Gustavo Miranda, e ao desempenho de Maurício Flórez, vai mandando suas raízes para dentro da terra, alongando mãos em folhas, explodindo sementes que se derramam e podem, sim, dar nascimento a abrigos acolhedores ou estrangular. Afinal, a transformação que o movimento opera não tem roteiro prévio. 


As plantas parecem estáticas, mas há um movimento intenso nelas, que não aparece pro olho humano. Talvez esse trabalho não esteja tornando visível uma transformação em flor, mas justamente sublinhando a transformação, essa transformação que cada objeto que estava no chão teve quando virou palavra, quando virou gesto. E que, ao final, o corpo de Maurício Flórez faz, quando silencia para virar uma memória do que possa ser uma flor, que passa a ocupar toda a cena, esvaziada dos outros objetos que a compunham. É preciso fechar os olhos e pender a cabeça, “para aproximar o cérebro do coração”, ele nos diz, “para não estragar a mágica”.


Como mágica, essa também nos leva a ver o que não estava visível no que já existia. É quando fica mais possível perceber que tudo aconteceu como uma fabulação. E a fabulação, como nos ensina Christine Greiner, não tem nenhum compromisso com interpretar ou explicar, não se dedica a construir qualquer relação com a verdade ou a origem da história que conta. A fabulação desloca, desestabiliza, abre para a potência do que pode surgir.


“Memória para se transformar em flor” parece ter ouvido a canção de Siba que diz: “Toda vez que dou um passo, o mundo sai do lugar”.




Sobre o artista: É dançarino, professor e coreógrafo. Nasceu em Medellín - Colômbia e mora em São Paulo desde 2012. É formado em dança e pedagogia na Universidade de Antioquia. Atualmente é estudante de botânica na Escola de Botânica de São Paulo e faz parte da comunidade Selvagem, espaço de pesquisa onde confluem arte, ciência e filosofias ancestrais indígenas, coordenado pelo pensador indígena Ailton Krenak e a Editora Dantes. Desde 2014 integra o núcleo artístico Key Zetta e Cia com direção de Key Sawao e Ricardo Iazzetta. Como artista independente criou as peças: Bolero (2015), UM (2017) e Memórias Para se Transformar em Flor (2024). Junto a seu parceiro Gustavo Miranda criou uma série de 65 minifilmes durante o período do isolamento social, este projeto foi indicado pelo APCA como melhor criação em dança em 2020. 


Sobre a peça: A peça é uma experiência performática, onde através de objetos, imagens e livros posicionados no espaço, vão sendo evocadas memórias do artista sobre a relação do corpo humano com o corpo vegetal e assuntos relacionados à metamorfose do corpo em planta.

 

"… Quando você vê uma flor, e a sente muito bonita. A sua alma e a alma da flor, se comunicam e intercambiam. Nesse momento você se torna a própria flor." – Takao Kusuno.   

 

Release: A peça utiliza a contação de histórias e a divulgação científica como ferramenta poética e expressiva para refletir e ampliar a ideia de vida para além do humano, convocando a admiração, a beleza e o encantamento pelo universo vegetal. Está composta por uma parte essencialmente narrativa e descritiva, com alguns jogos cénicos de luz e som, onde as pessoas interagem em diferentes atmosferas, dependendo do objeto escolhido. São as escolhas da plateia que desenham a dramaturgia da peça, pois é o público quem define em cada apresentação quais histórias serão contadas. O final da performance é sempre a mesma, a transformação metafórica do corpo em flor. 

Memórias Para Se Transformar em Flor apresenta um entrecruzamento de estudos científicos recentes sobre inteligência vegetal com narrativas que falam de uma natureza vegetal encantada.  Os conteúdos apresentados são inspirados no “Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida”, que é um projeto orientado pelo pensador indígena Ailton Krenak e a editora Dantes, onde se tem como objetivo articular conhecimentos a partir de perspectivas indígenas, tradicionais, acadêmicas e científicas.


Ficha técnica


Criação, direção e performance: Mauricio Flórez

Dramaturgia e assistência de direção: Gustavo Miranda

Concepção de iluminação e espaço cênico: Hideki Matsuka

Assistência de iluminação e operação de luz: Patrícia Savoy

Produção: Corpo Rastreado / Danusa Carvalho 

Criação de figurino: Beto Souza / Thelores Drag

Criação de trilha: Hedra Rockenbach

Ambiente sonoro: Gustavo Miranda

Objetos cênicos e adereços: Marcos Yamamoto (cerâmicas), Satie Inafuku – arteSfato (adereço cabeça), Mauricio Celis (coração). 

Contrarregragem: Marcos Yamamoto, Ayrton Jacó Meneses, Enrique Casas. 

Colaboração artística: Key Sawao, Ricardo Iazzetta, Carol Minozzi, Bia Sano, Marco Xavier, Pedro Galiza, André Menezes. 

Aulas de botânica: Anderson Santos - Escola de Botânica de São Paulo.

Apoio: Key Zetta e CiaSelvagem, ciclo de estudos sobre a vida e Oficina Cultural Oswald de Andrade.





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