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"Trovas" - O que dizem as sereias?

Foto do escritor: Jane OliveiraJane Oliveira

Atualizado: 17 de jul. de 2024

Sobre o espetáculo “Trovas”, de Paula Petreca, apresentado no Teatro Centro da Terra, dias 20 e 21 de junho de 2023.


Na varanda do Teatro Centro da Terra há uma grelha onde Paula Petreca assa sardinhas. Vestida com xales e bordados, a artista nos serve vinho tinto em pequenos copos de papel. Com sotaque português, ela nos fala sobre crises anunciadas, sobre o plástico que contamina os oceanos e os peixes que comemos e, num salto temporal repentino, fala sobre as grandes navegações de outros tempos. Passado e presente se aproximam. Ela se pergunta: “o que será que diziam as sereias que tanto amedrontavam os gajos que se lançavam ao mar em busca de novas terras?”


Quando entramos na sala de espetáculos A Velha está no palco de costas. Coberta de rendas pretas e sob uma luz amarelada Paula parece muito maior do que antes. Para mim, ela é a imagem de um luto antigo e antiquado, um luto católico, patriarcal, conservador. Quando a música começa, ela marca o ritmo com os pés e, aos poucos, vai despindo camadas e camadas de roupa, visitando danças e trajes típicos de Portugal e criando imagens de festas, de animais, de cavalgadas. Da plateia, visito todo um universo da cultura popular lusitana.


Nos últimos tempos, tenho visto muitas danças de coletivos e artistas negros que buscam honrar sua ancestralidade e resgatar histórias de luta e resistência que foram apagadas e violentadas. Há, entretanto, poucos artistas brancos (pelo menos, até onde meu radar alcança) que estão dispostos a visitar nosso passado colonial. Parece que temos um pouco de medo de encarar os privilégios de nossos antepassados imigrantes, a violência, a cultura e a religiosidade dos brancos que nos antecederam. Para alguns de nós, como eu, que sou branca, descendente de imigrantes espanhóis e portugueses, o peso dessa ancestralidade incomoda porque me lembra um parentesco com os colonizadores. Por outro lado, é importante olhar para esses vínculos e lembrar também que há uma continuidade histórica conectando as classes trabalhadoras brasileira e europeia. Na verdade, se olharmos bem para os fluxos migratórios ao longo da história, veremos que a classe trabalhadora está sempre em movimento, sempre buscando refúgio ou novas oportunidades, sempre sendo jogada de um lado para o outro pelo capital. Precisamos olhar para essas conexões.


No palco, vejo a imagem pesada da velha gradativamente rejuvenescer, ficar mais leve, mais exposta. Uma cultura portuguesa popular vai sendo evocada na sua diversidade, riqueza e colorido. O peso do luto se transforma na alegria da festa. 


A artista finalmente se despe de todas as camadas externas de figurino. Abaixo da superfície, encontramos a segunda e mais poderosa presença desse trabalho: A Sereia.


Silêncio. Paula, vestindo apenas uma calcinha preta, solta as tranças de seu longo cabelo escuro. A trilha mistura sons de sinos, de mar, de percussão brasileira. Ela mergulha a cabeça em direção ao chão e se ergue com energia, de novo e de novo. Seus cabelos chicoteiam o chão e depois parecem pairar no ar por um breve momento, como se sua imagem congelasse por um instante entre ondas, desaparecimentos e quedas. Ela é a sereia, a mulher-peixe, esse ser das águas e dos encantos, mas é também, ao mesmo tempo, a imagem do medo, da dor, do susto. Eu sinto minha respiração sincronizar com a dela e navego em mar revolto. A potência do corpo em cena afeta, por espelhamento, o corpo que assiste. Minha percepção de tempo foi alterada. O ritmo do movimento, que se repete sempre igual, sempre diferente, corta a linha dramatúrgica e cria uma suspensão, como se ficássemos presos nessa cena, sem saber até onde ela vai nos levar. Como diria a historiadora e crítica de dança francesa Laurence Louppe, Paula nos apresenta “o instante, enquanto único quadro possível de aparição do desconhecido, como fraturas de experiência”. A cena mareia e hipnotiza.


Mulher branca de cabelos pretos com as mãos na nuca sob baixa iluminação amarelada
Foto de Paulo César Lima

Nessa fratura de tempo, minha mente se perde em enigmas. As imagens quase fotográficas que surgem e desaparecem me intrigam. De quem é esse medo? E essa dor? Dos bravos “conquistadores” diante do mito? Essa é uma leitura possível que a obra certamente sugere por conta da fala introdutória. Mas porque então a cena me afeta tão profundamente? Estou eu a empatizar com os colonizadores ou há outras camadas de sentido que derivam não só da produção de imagens, mas do aspecto sensível do trabalho? Qual a potência de parar o tempo para mergulhar na história? Me lembro de um trecho de uma obra importante do filósofo alemão Walter Benjamim no qual ele critica os textos históricos tradicionais cujo ponto de vista é sempre dos vencedores. Na tese V do texto “Sobre o conceito da História” ele nos diz:


“A verdadeira história do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser compreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento de seu reconhecimento.”

Para Benjamim, a busca por uma história que revele o ponto de vista dos vencidos é da máxima importância para entendermos e agirmos no presente. Em meio a essa tempestade cênica que nos aprisiona no tempo da repetição violenta do movimento e ilumina como relâmpagos as imagens fugidias dos instantes de suspensão entre uma onda e outra, não penso no susto dos navegadores diante da sereia, mas nos povos originários de frente para os invasores, nos povos africanos sendo sequestrados por navios negreiros, nos exilados de guerra em botes precários e nos imigrantes pobres na terceira classe dos navios. No verso dos grandes feitos se esconde a história que nos interessa. O nome “Trovas” evoca os trovadores e suas cantigas, mas também ecoa a palavra trevas.


Ainda há mais uma camada de percepção que me atravessa nessa cena: o corpo feminino não domesticado, ou melhor, desdomesticado, em toda a sua potência. Há algo catártico na expressão da liberdade e na reapropriação do tempo e do movimento. Talvez por isso A Sereia de Paula Petreca seja essa espécie de exorcismo cênico, um ritual violento de ruptura, enfrentamento e limpeza, um caminho aberto para transformação.


Paula termina o episódio exausta, como um náufrago que finalmente chega na praia. Eu, como ela, me sinto esgotada. Tempo para pensar e respirar. Alguns minutos se passam antes que surja em cena a terceira presença dessa obra. A Cabra se constrói com punhos no chão e pernas compridas. Ela se ergue, se recolhe, cai de lado com o corpo tensionado, pari e embala o filho da dor, nosso ancestral, nosso futuro. Quem somos nós, afinal?


O último episódio nos apresenta à Cigana. Para construí-la, Paula recolhe todas as peças de roupa que estava jogadas no canto do palco e veste-as de maneira contraintuitiva: um colete vira uma espécie de saia, a manga de uma jaqueta é enfiada numa perna... Seu corpo vira uma colcha de retalhos viva, um ser sem rosto, sem forma definida. Suas mãos suplicam, chamam e protegem esse ser estranho e rasteiro, composto por restos e fragmentos de passado, soterrado de história, sem posses ou identidade. A Cigana, como sabemos, vive à margem do sistema e se vira com que tem. Sua cultura é residual, não produtiva. Sua presença, sempre efêmera, é incômoda e causa atrito. Sozinha, porém, ela não constrói mudança. O espetáculo termina quando ela desaparece.


Mulher usando vestido vermelho e coberta de rendas pretas e sob uma luz amarelada
Foto de Paulo César Lima

“Trovas” é resultado de uma pesquisa de longa e corajosa, que começou de forma independente em 2018, ecoou as vivências do período em que Paula esteve em Portugal, passou por uma experiência de dois anos da artista num grupo folclórico em São Paulo, por outra viagem à Portugal, visitou diversos espaços de ensaio pela Grande São Paulo, virou um filme durante a pandemia e estreou presencialmente apenas em abril de 2022, com uma apresentação no Teatro Elis Regina, em São Bernardo. Depois de muitas tentativas de fazer o trabalho circular, Paula achou que “Trovas” havia cumprido seu ciclo de vida. Recentemente, a convite de Diogo Granato, Paula fez apenas mais duas apresentações no Teatro Centro da Terra na cidade de São Paulo e, segundo ela, se despediu novamente do trabalho.


Por que um trabalho que levou anos para tomar forma subitamente desaparece? O caso de “Trovas” é um exemplo entre muitos. Há um universo de trabalhos, espetáculos, projetos e pesquisas interessantíssimas em dança engavetados, abandonados ou abortados pela falta de dinheiro, pela falta de espaços e pela precarização do setor cultural. A arte consequente, assim como a ciência, é também produção de conhecimento e é, portanto, uma arma contra a ignorância. Mais do que isso, a arte é trabalho e precisa ser valorizada como tal. Eu não vou me aprofundar nessa discussão aqui, mas é importante que o leitor saiba que a situação dos artistas independentes é bastante complicada e que quem perde, no limite, somos todos nós.


Lá na cena inicial de “Trovas”, Paula nos avisa que em breve não teremos mais peixes para comer por conta da contaminação de plásticos nos oceanos e que, mesmo sabendo disso, não estamos fazendo nada. É claro que cada um de nós sozinho não pode fazer nada, nem pelos peixes, nem pela dança. Por isso agradeço à equipe do Ensaios Críticos pelo convite para juntar forças e ativar o pensamento e a palavra escrita. De minha parte, deixo aqui esse texto como documento de que o espetáculo “Trovas”, de Paula Petreca, existiu e me emocionou.



Referências


Benjamin, Walter. O Anjo da História. Organização e tradução: João Barreto. Autêntica: Belo Horizonte, 2023. 

Louppe, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Tradução: Rute Costa. Orfeu Negro: Lisboa, 2012.


Sobre a Obra

Informações obtidas no site do Teatro Centro da Terra em 08/07/2024


Trovas é um solo de Dança que se debruça a observar como relações entre Brasil e Portugal através de um compêndio de imagens femininas como "A Velha", "A Sereia", "A Cabra", "A Cigana", entre outras aparições. A pesquisa coreográfica caminha pelo imaginário corporal despertado pelas paisagens lusitanas (mares, montanhas, rebanhos, cidades de pedra), em contraste com o corpo brasileiro da intérprete, permeado por vocabulários de danças populares de Portugal e danças contemporâneas. Trovas aborda um inconsciente colonial no espaço de um corpo de mulher e sua relação com a natureza.


Paula Petreca é bailarina, professora de movimento, yoga e pesquisadora de História da Dança. Tem graduação em Comunicação Social, formação em dança pelo c.e.m - centro em movimento de Lisboa e no programa de Mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC de São Paulo. Desde 2010 dirige o Projeto Co - dança em espaços vários, criando danças nas cidades. Ministra aulas de movimento desde 2002, atuando também na concepção de projetos pedagógicos, especialmente no âmbito de políticas públicas para a cultura.


Ficha Técnica


Criação e Performance: Paula Petreca

Dramaturgia Holística: Emiliano Manso aka Alexandre Magno

Trilha Sonora original: Marcos Till 

Edição de Som e Mixagem: Flávia K

Figurino: Ateliê Vivo (Gabriela Cherubini, Flavia Lobo de Felício, Carolina Cherubini, Andrea Guerra)

Iluminação: Yorrana Soares

Produção: Paula Petreca 

Imagem de divulgação: Jane Oliveira



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